Deixem as crianças de Santos brincar de democracia
Por Osvaldo Moles
Os meninos do Grupo Escolar “Cesário Bastos”, da cidade de Santos, resolveram eleger uma Câmara Escolar, com prefeito, vereadores, discussões em plenário, projetos de lei, emendas e discursos – enfim, todo o material parlamentar próprio das câmaras, menos as de ar e as frigoríficas. Vai daí, o sr. Tales de Andrade, diretor do Departamento de Educação, não gostou do assunto. E mandou fechar a Câmara, fechar o prefeito e fechar também na cadeia da angústia o diretor do grupo escolar, homem que se desiludiu da existência democrática, porque, como disse ele em seu telegrama, “quando um diretor é proibido de ensinar aos seus alunos o amor à Justiça, à Liberdade e à Democracia, já não é mais diretor de coisa alguma”.
Quem estará com a razão, neste caso? O sr. Tales, que atendeu à escola getulina de fechar parlamentos, ou o diretor do Grupo Escolar “Cesário Bastos”, que quer ensinar democracia às crianças, na sua parte mais viva? Diógenes, o do tonel, que não acreditava em nada, dizia que existem sempre duas verdades quando dois homens litigam.
A verdade do diretor do grupo é uma só: “Por que é que podem os senhores adultos brincar de pegador, agacha-agacha na Assembleia e não podem as crianças de uma escola brincar de Parlamento?”
A verdade do sr. Tales deve traduzir-se em outras perguntas: “Deixemos aos senhores deputados a discórdia, o gesto pouco cortês, a ignorância e a falta de critério nas discussões. Crianças que têm juízo então podem representar o mesmo papel?”
Ambos têm razão e ambos se queixam.
Mas… aqui cabe mais uma pergunta: “Por que é que não podem as crianças largar o pegador e brincar de Parlamento?”
O sr. Tales de Andrade, evidentemente, já tem sua resposta engatilhada: “Crianças não se devem prestar a certos papéis. Por que é que devem elas abandonar o ‘uma na mula’, o ‘boca de forno’, brincadeiras muito sérias, muito respeitáveis, para se meter a imitar esses desastrados exemplos dos parlamentos?”
Porém, sr. Tales, crianças são teimosas. E são capazes de fazer o parlamento em plena rua, em praça pública, sem necessidade de sala de sessões. E são capazes de fazer isso sem fortunas pagas a taquígrafos, sem salas de café e até, num gesto de alto patriotismo, de graça e sem jetom para comparecimento às sessões.
(Crônica publicada originalmente no Diário da Noite na década de 1950 e reproduzida no livro “Recado de uma garoa usada – Crônicas de São Paulo e flagrantes sem itinerário“, Garoa Livros, 2014.)